Elena Ferrante: em entrevista rara, autora comenta o processo de escrita da tetralogia napolitana

Fabiane Secches
17 min readMay 23, 2018

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Tradução de entrevista concedida a Didier Jacob, originalmente publicada na revista francesa L’Obs em janeiro de 2018 e republicada em inglês no Los Angeles Times em maio de 2018. Essa é, portanto, a versão da versão da versão, uma vez que as respostas originais de Ferrante provavelmente foram escritas em italiano.

Sarah Wilkins para o Los Angeles Times

Por Didier Jacob

Há sete anos, a publicação de um livro transformou uma romancista italiana até então desconhecida em uma das personalidades mais importantes do início do século 21. O que torna o fenômeno ainda mais raro é o fato de que a autora em questão escreveu um épico com ambições literárias incontestáveis, e não um livro para jovens leitores, como é o caso da série Harry Potter. Trata-se de uma saga com inúmeras alusões à história italiana, ancorada em um pequeno canto de Nápoles — elementos que poderiam ter limitado, de antemão, a recepção da obra em outros países.

O triunfo de A amiga genial é ainda mais assombroso tendo em vista que a autora não participa da divulgação de seus livros. Elena Ferrante é uma mulher sem rosto: sua identidade é conhecida apenas pela editora italiana E/O, responsável por sua publicação. Seu nome é um pseudônimo que soa como uma homenagem discreta à grande romancista italiana Elsa Morante, autora de A Ilha de Arturo — na entrevista abaixo, Ferrante conta que sempre estimou o trabalho de Morante. Ninguém nunca conseguiu revelar a verdadeira identidade de Ferrante, embora alguns nomes tenham circulado na imprensa: Domenico Starnone, um roteirista e romancista napolitano, vencedor do prêmio Strega em 2001; ou Anita Raja, uma tradutora que vive em Roma. Há quase dois anos, o jornalista italiano Claudio Gatti publicou um furo de reportagem identificando Raja como Ferrante depois de ter revirado seus impostos e concluído que os bens de Raja excediam o que seria razoável para uma profissional da área. Contrariando todas as probabilidades, a suposta revelação da identidade de Ferrante provocou um escândalo mundial.

Para suas leitoras e seus leitores, seu desejo de anonimato deve ser respeitado. Um clamor internacional de fãs veio em defesa de sua amada escritora e do anonimato que queriam preservar. Nunca se viu nada parecido.

A série que se inicia com A amiga genial vendeu mais de 5,5 milhões de exemplares em 42 países, duas milhões delas nos Estados Unidos, pela Europa Editions, e é o resultado bem-sucedido de uma política editorial que valoriza excelência e paciência em vez de gratificação imediata. Para os profissionais do mercado editorial, esse é um sinal de que, em uma época de superficialidade, ainda existem outros caminhos: em vez de publicar livros para que tolos se sintam bem, é possível atingir uma vasta audiência apostando em literatura de verdade.

Mas de onde vem todo esse entusiasmo pelo retrato tumultuado de Lila e Elena (também chamada de Lenù), duas moças vindas de um bairro pobre de Nápoles, e de sua amizade iniciada no fim dos anos 1950? Para além de um público sedento por narrativas longas, o que também podemos observar no boom das séries de TV, leitoras e leitores de todo o mundo parecem estar interessados em sentimentos genuínos. Quem entre nós já não sonhou em viver relações complexas e encantadoras como as dessas amigas “geniais”? Lila deixa de estudar para trabalhar na oficina de sapatos da família, enquanto Elena tem uma educação clássica e acaba deixando Nápoles em busca de sucesso profissional. As muitas reviravoltas no enredo e a multiplicidade de personagens em uma época em que a marca registrada tem sido a simplicidade acabam sendo um encanto a mais. O fato é que os livros são antes de mais nada muito engenhosos: seduzem lentamente com um raríssimo poder de atração, e têm o irresistível je ne sais quoi que encontramos nos sucessos repentinos.

E Ferrante? Por detrás da máscara, a escritora destila suas declarações com o comedimento de uma farmacêutica. As entrevistas concedidas podem ser contadas nos dedos e são sempre conduzidas por e-mail, tendo a editora italiana como intermediária. O desejo pelo anonimato não é algo negociável. Para ela, uma vez que um livro esteja terminado, é preciso que se sustente sozinho. Quebrando o silêncio quase constante, ela nos conta como concebeu A amiga genial, confidencia a profunda alegria que sente em escrever e fala do prazer em responder às questões de suas leitoras e de seus leitores em relação à obra. Longe de ter se fechado em uma torre de marfim, discute o movimento #MeToo e faz um forte clamor para que as conquistas do feminismo sejam duradouras. Ferrante compara a experiência das grandes atrizes de Hollywood a das mulheres pobres de Nápoles, em uma defesa especialmente entusiasmada. Por fim, também dá algumas pistas inéditas que podem nos ajudar a entender não quem ela é, mas sim algo que, de certo modo, daria no mesmo: por que ela escreve.

Você se lembra de quando lhe ocorreu a ideia de escrever A amiga genial?

Não sou capaz de dar uma resposta precisa. A origem pode ter sido a morte de uma amiga, ou uma festa tumultuada de casamento, ou talvez a necessidade de retornar aos temas e às imagens do romance anterior, A filha perdida. Ninguém sabe exatamente de onde vem uma história, ela é fruto de uma variedade de sugestões que, junto com outras de que sequer nos damos conta, estimulam nossa mente.

Você soube desde o início que precisaria de quatro volumes para contar a história completa?

Não. No primeiro rascunho, a história de Lila e Lenù se encaixaria facilmente em um único volume extenso. Quando comecei a desenvolver a primeira versão é que entendi que haveria dois, três, quatro volumes.

A história toda foi planejada de antemão, antes que o processo de escrita de fato começasse?

Não, nunca planejo minhas histórias. Um esboço detalhado é o suficiente para me fazer perder o interesse. Até mesmo um breve relato oral compromete o desejo de escrever aquilo que eu tinha em mente. Sou daquelas que começam a escrever sabendo apenas algumas características essenciais da história que pretendem contar. O restante se descobre a cada linha.

O primeiro livro da série foi publicado [na Itália] em 2011. O último, em 2014 — um curto período de tempo para uma empreitada tão ambiciosa. Você já tinha escrito a maior parte da série antes da publicação do primeiro volume? Poderia nos contar sobre o tempo de escrita/publicação da obra?

Comecei em 2009 e passei um ano, mais ou menos, completando a história, com suas muitas reviravoltas. Então passei a revisar e descobri, com grande alegria, que desde a primeira página, o texto ia se expandindo; crescia e crescia, ficando cada vez mais detalhado. Ao final de 2010, por conta da quantidade de páginas que havia acumulado somente para contar a história da infância e da adolescência de Lila e Lenù, a editora e eu decidimos dividir em volumes.

Imagino que quando o primeiro romance da série foi publicado, você conseguia escrever com tranquilidade. Então veio o extraordinário sucesso, que poderia ter comprometido a escrita. Como você conseguiu manter o trabalho a salvo do sucesso esmagador?

Foi uma experiência completamente nova para mim. Quando criança, gostava de contar histórias e de encontrar palavras que impactassem a pequena audiência composta por crianças da minha idade que se reunia ao meu redor. O encorajamento dessas crianças era eletrizante, sentir que queriam que eu continuasse, escolher a história para o próximo dia, para a próxima semana. Era uma aventura emocionante e uma responsabilidade que me empolgava. Acho que senti algo parecido entre 2011 e 2014. Uma vez afastada do clamor da mídia — o que foi possível graças a ausência que escolhi desde 1990 — o prazer que senti na infância retornou: dar forma à história enquanto uma audiência atenta e cada vez mais numerosa queria que contasse mais e mais. Enquanto as leitoras e os leitores estavam lendo o primeiro volume, eu estava refinando e terminando o segundo; enquanto as leitoras e os leitores estavam lendo o segundo, estava refinando e terminando o terceiro, e assim por diante.

Olhando para trás, como você descreveria seu processo de escrita? Foi fácil e tranquilo desde o início? Ou, ao contrário, você teve momentos de dúvida? Você passou por muitos rascunhos, muitos cortes e edições?

No passado, tive muitos problemas com a escrita. Eu sempre escrevi, desde a adolescência, mas era uma luta e, geralmente, ficava insatisfeita com o resultado. A consequência é que poucas vezes me senti convencida de que deveria publicar. No caso dessa história tão longa, foi diferente. O primeiro rascunho saiu sem nenhum obstáculo: o puro prazer de contar uma história predominou. E o trabalho que se seguiu foi surpreendentemente fácil, como uma festa permanente. O acabamento dos quatro volumes, o refinamento para publicação, foi essencialmente fiel aos primeiros rascunhos e, ao mesmo tempo, expandiu e tornou o material mais complexo. Sem crises, em outras palavras, sem dilemas, apenas com alguns poucos cortes, alguns trechos reescritos, uma cascata de novas inserções. Em minha mente, fica a impressão de um maremoto que, quando passa, somos gratos por ter sobrevivido a ele.

Em uma carta a Mario Martone, você disse que qualquer distração pode fazer a escrita parecer desnecessária, apontando a fragilidade de tudo. No entanto, nenhum escritor parece mais forte do que você, nem com mais condições de construir um trabalho de ficção colossal. Concorda que essa combinação de fragilidade e força é essencial para a sua escrita?

Meu maior medo é de repente sentir que dedicar tanto da minha vida à escrita seja algo sem sentido. É uma sensação que me ocorre com frequência e temo que retorne. Eu preciso de muita determinação, de teimosia, de um aderência passional à página para não sentir a urgência das outras coisas por fazer, uma maneira mais ativa de passar a minha vida. Então sim, eu sou frágil. Para mim, é muito fácil notar as outras coisas e me sentir culpada. Por isso, é de orgulho que preciso, mais do que de força. Enquanto estou escrevendo, preciso acreditar que cabe a mim contar essa ou aquela história e que seria errado me esquivar ou deixar de usar minhas melhores habilidades para completá-la.

De onde vem a energia vital da sua escrita?

Não sei se minha escrita tem a energia que você diz. Mas, claro, se essa energia existe, é porque não encontra outras saídas ou porque, conscientemente ou não, me recuso a oferecer outras saídas. Quando escrevo obviamente arrasto comigo partes de mim mesma, de minha memória, que são agitadas, fragmentadas, que me deixam desconfortáveis. Uma história, a meu ver, só merece ser escrita se o seu centro vem daí.

Sarah Wilkins para o Los Angeles Times

Em suas descrições, Nápoles é uma cidade dura, violenta e desagradável, principalmente na segunda metade do quarto volume, quando Lila e Lenù têm que se confrontar com a violência em toda parte. Você testemunhou pessoalmente atos de extrema violência em Nápoles? Como as pessoas que vivem lá têm conseguido lidar com a violência ao longo dos anos? Será que elas chegaram a um entendimento especial a respeito da violência inerente à condição humana? Será que você compartilha desse entendimento?

Uma pessoa precisa ter muita sorte para não ser nem de leve tocada pela violência e por suas tantas manifestações em Nápoles. Mas talvez isso também se aplique a Nova York, Londres, Paris. Nápoles não é pior do que outras cidades da Itália ou do mundo. Levei muito tempo para entender isso. Antes eu achava que apenas em Nápoles a legalidade perdia suas fronteiras e se confundia frequentemente com a ilegalidade, que apenas em Nápoles os bons sentimentos, de repente, abruptamente, sem aviso prévio, tornavam-se maus sentimentos. Hoje me parece que todo o mundo é Nápoles e que Nápoles tem o mérito de sempre ter se apresentado sem máscaras. Como é uma cidade, por natureza, de uma beleza deslumbrante, o feio — a criminalidade, a violência, a corrupção, a conivência, o medo assustador em que nós vivemos, desamparados, a deterioração da democracia — aparece mais nitidamente.

Lila e Lenù sofrem muito ao longo da história. Por que escolheu sujeitá-las a tantas experiências trágicas?

Não me parece que o sofrimento delas seja muito diferente do sofrimento que as mulheres enfrentam em todas as partes do mundo, especialmente se nascem pobres. Lila e Lenù se apaixonam, se casam, são traídas, traem, buscam por um lugar no mundo, enfrentam discriminação, se tornam mães, algumas vezes são felizes, algumas vezes infelizes, experimentam perdas e mortes. Eu utilizo o novelesco, mas com relativa moderação. A ligação emocional que estabelecemos com as personagens é, geralmente, o que faz a história parecer uma série interminável de desgraças. Na vida, como nos romances, percebemos as dores alheias e as sentimos como nossas apenas quando amamos, quando nos importamos com essas pessoas.

No quarto volume, por que você escolheu fazer de Nino um personagem tão cruel e superficial?

Eu quis descrever os efeitos da superficialidade quando combinada a uma boa educação e a uma inteligência moderada. Nino é um homem inteligente, mas superficial, um tipo de homem com o qual estou bastante familiarizada.

Por que, no quarto volume, perto do final da história, a narrativa precisou do desaparecimento traumático e torturante de Tina?

Aqui terei que me recusar a compartilhar minhas razões — prefiro que as leitoras e os leitores encontrem seu próprio caminho. Posso apenas enfatizar que esse acontecimento sempre esteve lá, mesmo antes de começar a escrever, esse era um dos poucos pontos definitivos e inevitáveis da jornada narrativa que eu tinha em mente.

Lila é uma entusiasta das ferramentas eletrônicas, a exemplo dos computadores. Ela parece guiada por um brilhantismo instintivo e, ainda assim, surpreendentemente, ela entende a lógica dessas máquinas. Ela é mais imprevisível do que Lenù, ou seria o contrário?

Na minha concepção, Lila nunca foi uma entusiasta. Desde que foi forçada a abandonar a escola, ela aplica sua inteligência a qualquer coisa que por um motivo ou outro aparece no campo de ação em que ela própria se encontra. É porque o pai de Lila era um sapateiro que ela desenha sapatos. É porque Enzo fez os cursos da IBM por correspondência que ela se envolve com eletrônicos. Ao contrário de Lenù, que usa a educação para ultrapassar as fronteiras do bairro e escapar, ávida pela ambição de escrever, Lila aplica seu brilhantismo no que surgir pela frente sem utilizar o seu verdadeiro potencial em nada do que se envolve. Se quisermos colocar de maneira esquemática, o único projeto de longo alcance que de fato excita Lila é a vida de sua amiga.

Na tetralogia, as mulheres se esforçam para superar situações enquanto os homens frequentemente se aproveitam delas. Como você se sente em relação aos protestos do movimento #MeToo em várias partes do mundo?

Acredito que o movimento tenha iluminado uma realidade que as mulheres conhecem desde sempre e sobre a qual vinham mantendo um relativo silêncio. O domínio patriarcal, até mesmo no mundo ocidental, apesar das aparências, ainda está muito arraigado, e cada uma de nós, nos lugares mais diversos, das formas mais variadas, sofre a humilhação de ser uma vítima silenciosa ou uma cúmplice amedrontada ou uma rebelde relutante ou até mesmo uma acusadora diligente das vítimas antes do que dos estupradores. Paradoxalmente, não parece que exista uma diferença substancial entre as mulheres da periferia napolitana que aparecem nas minhas histórias e as atrizes de Hollywood ou as mulheres cultas e sofisticadas que trabalham nos mais altos cargos do sistema socioeconômico. Engrossar o coro dizendo “Eu também [Me Too]” soa como algo positivo, mas somente se mantivermos as coisas em perspectiva: apenas as causas particulares são prejudicadas por excessos. Ainda que o poder dos [ofensores] grandes e pequenos, quer estejam no centro do mundo ou nas periferias, permita que não se envergonhem das várias formas de violação a que nos submetem e, com apoio de um sistema repulsivo, nos faça pensar que somos nós que devemos nos envergonhar.

Você poderia prever ou clamaria pelo surgimento de um novo feminismo emergindo a partir do movimento #MeToo?

Um certo desdém pelo feminismo das mães e avós se espalhou entre as novas gerações nos últimos anos. Há uma convicção de que os poucos direitos que temos hoje são um fato da natureza e não o produto de uma batalha política e cultural extremamente árdua. Espero que as coisas mudem e que as garotas se dêem conta de que nós temos milênios de subserviência nas costas, de que a batalha deve continuar e de que, se baixarmos a guarda, não precisará muito para eliminar o que, ao menos no papel, quatro gerações de mulheres conseguiram garantir com muita dificuldade.

Você concorda que seus romances pertencem antes a uma tradição de narrativas populares (como as de Alexandre Dumas), com muita ação e muitos personagens, do que a uma abordagem mais modernista, mais minimalista, de contar histórias?

Não. Posso escolher reutilizar alguns dos potentes dispositivos da literatura popular, mas se faço isso, estou em uma época completamente diferente, gostando ou não, da que essa literatura teve seu auge. O que quero dizer com algum pesar é que de modo algum posso ser Dumas. Pertencer à grande tradição dos romances populares não significa mais, para o bem ou para o mal, criar esse estilo de narrativa, mas sim utilizá-la, distorcê-la, violar suas regras, frustrar suas expectativas, tudo a serviço de contar uma história do nosso tempo. Remexer e desordenar o grande depósito do romance e do anti-romance é, na minha opinião, um dever de qualquer narrador profissional de hoje. Diderot foi capaz de escrever A religiosa, mas também Jacques, o fatalista. Nós podemos apagar a fronteira entre as diferentes experiências literárias e utilizá-las simultaneamente para dar forma a nosso momento histórico. Uma boa quantidade de ação, muitos personagens ou o minimalismo que você menciona, se tomados separadamente, não podem nos levar muito longe nos dias de hoje. Vamos tentar nos livrar dessas gaiolas inúteis.

Certa vez você disse que descobriu Flaubert ainda muito jovem, em Nápoles. Quando foi que você se apaixonou pela primeira vez por um livro, ou por um personagem, e também pela literatura?

Sim, eu realmente amo Madame Bovary. Quando garota, lia e me sentia tragada pelas histórias e pelos personagens do mundo em que estava vivendo, e Emma, não sei por que, soou próxima de muitas mulheres em minha família. Mas bem antes de Madame Bovary, eu amei Mulherzinhas, eu amei Jo. Esse é o livro que está na origem do meu amor pela escrita.

Você foi influenciada por escritoras mulheres (possivelmente francesas, como Colette, Duras etc.)?

Quando era garota, lia todo tipo de coisa, sem seguir uma orientação específica, e não prestava atenção nos nomes das autoras e dos autores — se eram homens ou mulheres, isso não me interessava. Eu me encantei pelos personagens de Moll Flanders, pela Marquesa de Merteuil, por Elizabeth Bennet, por Jane Eyre, por Anna Karenina, e não me importava com o gênero de quem escrevia. Mais tarde, no fim dos anos 1970, comecei a me interessar pela escrita de mulheres. Se ficarmos entre as escritoras francesas, li quase tudo de Marguerite Duras. Mas o livro dela com que passei mais tempo, estudando de perto, é Le Ravissement de Lol V. Stein; é o romance mais complexo de Duras, mas também aquele com que mais se pode aprender.

Como você se sente em relação à escrita de mulheres? Você acredita que essa categoria exista — que exista uma escrita feminina e uma escrita masculina? Por exemplo, Elsa Morante versus Hemingway? E quanto a seu próprio estilo, você diria que é uma combinação de ambos?

Certamente, a escrita de mulheres existe, mas, principalmente, porque até mesmo a escrita é fortemente condicionada pela construção histórica e cultural que é a ideia de gênero. Dito isso, a ideia de gênero tem uma malha cada vez mais ampla, suas regras foram afrouxadas e é cada vez mais difícil reconstruir o que influenciou e nos formou como escritores. Aprendi com os livros que li e estudei, de escritoras e escritores, e eu poderia facilmente nomeá-los, mas eu também fui afetada profundamente por frases de que não me lembro mais a procedência, se de um homem ou de uma mulher. O aprendizado de literatura, em resumo, passa por canais que são difíceis de identificar. Por isso, evito dizer que fui moldada por esse ou aquele autor, essa ou aquela autora. Acima de tudo, eu evito dizer que fui moldada tão somente pela escrita de mulheres, embora tenha adorado e ainda adore Menzogna e sortilegio, de Elsa Morante. Estamos em uma época de grandes mudanças e a apresentação de gênero corre o risco de ser não apenas pouco convincente, como não exatamente precisa.

Quando lê um livro, o que você mais aprecia?

Acontecimentos inesperados, contradições significativas e desvios repentinos de linguagem na representação psíquica das personagens.

Na tetralogia, a maternidade é inimiga da escrita (Lenù está tão ocupada em cuidar de suas filhas que nunca consegue se concentrar como precisa). Em sua experiência pessoal, qual é o melhor cenário para escrever? Sozinha? Sem ver ninguém? Vivendo uma vida reclusa? Ou, ao contrário, saindo bastante, encontrando inspiração no contato com as pessoas, talvez se apaixonando?

Quando alguém se apaixona, escreve muito bem. E, de maneira geral, se alguém não tem experiência de vida, sobre o que irá escrever? Passar o tempo com foco apenas na escrita é a ambição de um adolescente, de um adolescente triste. Viver é uma perturbação constante da escrita, mas, sem isso, escrever é um rabisco frívolo na água. Dito isso, a vida, quando tem a força de um maremoto, pode devorar o tempo de escrever. A maternidade, em minha experiência, certamente é capaz de varrer a necessidade de escrever. Engravidar, trazer uma criança para o mundo e criá-la é uma experiência maravilhosa e dolorosa que consome muito tempo — especialmente se você não tem dinheiro para comprar o tempo e a energia de outras mulheres — e que rouba espaço e sentido de todo o resto. Naturalmente, se a necessidade de escrita é forte, cedo ou tarde você vai encontrar um arranjo que te dê alguma brecha. Mas isso vale para todas as experiências fundamentais da vida. Elas nos atingem, nos submergem e, se não acabamos mortos em algum canto, nós voltamos a escrever.

Foi difícil acordar um dia e pensar: “A história de Lila e Lenù acabou. Terminei de escrevê-la.”? Como dar à luz e, de repente, se sentir vazia de algum modo?

A metáfora do nascimento aplicada ao trabalho de escrita nunca pareceu convincente para mim. A metáfora da tecelagem soa mais eficaz. Escrever é uma das próteses que inventamos para dar poder a nosso corpo. Escrever é uma habilidade, um forçar de nossos limites naturais que requer longo treinamento para assimilar técnicas que nós usamos com perícia crescente e, se for preciso, inventamos novas. A tecelagem representa bem essa ideia. Nós trabalhamos por meses, por anos, tecendo um texto, o melhor que somos capazes naquele momento. E quando está pronto, está lá, para sempre o mesmo, enquanto nós mudamos e continuaremos a mudar, prontos para tentar criar outras tessituras.

Alguma vez você considerou escrever uma sequência [da tetralogia], ou histórias desdobradas (como J.K. Rowling fez com Harry Potter)? O final permitiria isso, não é?

Não, a história de Lila e Lenù está terminada. Mas conheço outras histórias e espero ser capaz de escrevê-las. Quanto a publicá-las, eu não sei.

Sua obra [a tetralogia] valoriza a amizade mais do que tudo, até mesmo mais do que o amor, que é imprevisível e pode desaparecer. Você valoriza a amizade dessa maneira em sua vida pessoal?

Sim, a amizade é como o amor, mas corre menos risco de se deteriorar. Não está constantemente ameaçada pelo sexo, pelos perigos na mistura de sentimentos e no uso dos corpos para dar e receber prazer. Amizades com sexo são mais comuns hoje em dia, um jogo de corpos e afinidades eletivas que procura evitar tanto o poder do amor quanto o rito do sexo puro. Se isso funciona, não sei dizer.

Perguntei a vários escritores onde eles escrevem. O mais recente foi Tom Wolfe, que descreveu sua escrivaninha e a cor da parede de seu escritório — azul. Você poderia descrever o lugar de onde você escreve (ou, se não, você poderia nos contar quais objetos você estima e procura manter por perto quando vai escrever)?

Eu escrevo em qualquer lugar. Não tenho um quarto todo meu. Eu gostaria de ter um espaço vazio, com paredes brancas. Mas é antes uma fantasia estética do que uma necessidade real. Quando escrevo, se está indo bem, logo esqueço onde estou.

Traduzi essa entrevista para minha pesquisa de mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo.

Essa versão foi feita a partir da tradução para o inglês feita pelo Los Angeles Times. Para não haver mais perdas, tentei fazer uma tradução quase literal, colada ao material publicado.

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