O que estamos perdendo

Fabiane Secches
5 min readJun 11, 2018

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Gas, de Edward Hopper (1940)

Num texto publicado recentemente na revista New Yorker, o escritor Andrew Salomon, autor do premiado O demônio do meio-dia (2003), faz algumas ponderações sobre o modo de vida contemporâneo:

“A modernidade é alienante, e tem sido alienante há muito tempo; olhe para as pinturas de Edward Hopper se você acredita que essa miséria pós-industrial surgiu apenas depois da invenção da internet.

(…)

No cenário nacional [dos Estados Unidos], temos observado o acolhimento do preconceito e da intolerância, o que afeta o estado de espírito de todos os cidadãos. Meu psicanalista diz que nunca lhe acontecera antes de cada paciente discutir as políticas nacionais repetidamente, sessão após sessão. Agora, de um lado, temos uma tensão contínua de ansiedade e medo. De outro, a brutalidade. O ódio é deprimente — é obviamente deprimente ser odiado, mas também é deprimente odiar. A erosão da rede de segurança social significa que mais pessoas estão na iminência de um colapso e que existem poucas mensagens autênticas de conforto para oferecer a elas nesses tempos impiedosos. As pessoas estão tomadas pela doença, pelo isolamento e pelo desespero, pelas dificuldades da vida. Nesse momento, a vulnerabilidade de muitas pessoas é exacerbada pela falta de gentileza nos noticiários de cada dia. Nós sentimos tanto as nossas angústias quanto as do mundo. Há uma escassez de empatia, até mesmo de gentileza, na conversa nacional, e esses déficits transformam a neurose ordinária em atos de desespero”.

Nesse mesmo caminho, o colunista Frank Bruni escreveu o seguinte em texto publicado no New York Times:

“(…) a morte de [Anthony] Bourdain, seguida do suicídio da amada estilista Kate Spade, chama atenção para outra questão: o quanto diz da disparidade entre o que vemos das pessoas externamente e o que elas estão vivenciando internamente; entre suas figuras públicas e suas realidades privadas; entre o verniz visível e a dor invisível. Partes que não vemos: essa era a verdade de Bourdain. Essa era a verdade de Spade. Essa é a verdade de cada um de nós.

As mortes de Bourdain e Spade aconteceram na mesma semana em que novas estatísticas foram divulgadas pelo governo revelando um aumento de mais de 25% de suicídios entre 1999 e 2016, período em que aproximadamente 45 mil americanos tiraram suas próprias vidas. Especialistas se preocupam que essa trajetória reflita um colapso dos laços sociais, da comunidade.”

Não podemos afirmar se foi assim para Anthony Bourdain e Kate Spade, mas parece difícil negar que estejamos diante de um fenômeno social recorrente, um sofrimento de ordem coletiva. Por isso, pensar em que medida o contexto nos torna mais ou menos vulneráveis é fundamental para avançar na discussão.

É o que tem sido feito, por exemplo, no Latesfip, o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da Universidade de São Paulo, que busca olhar para o mundo contemporâneo a partir das confluências entre essas áreas. O livro Patologias do social, publicado recentemente pela editora Autêntica, reúne textos de quase dez anos de pesquisa do grupo. As discussões mais recentes buscavam examinar as relações entre subjetividade, psicopatologia e neoliberalismo.

Em Mal-estar na civilização (1930), Freud escreveu sobre os efeitos da repressão da agressividade no psiquismo e sobre a impossibilidade de transformar o discurso de amor ao próximo em prática incondicional. É um contraponto que coloca a agressividade como parte natural da vida: que ela possa ser expressada, em certa medida, é sinal de saúde, não de doença. Um discurso que prega um amor livre de conflitos é insustentável de saída.

Mas, quando o discurso vigente incita o oposto, evocando ódio e intolerância, temos a legitimação para que o pior de nós possa emergir. Retiramos o interdito que funda o pacto civilizatório e nos reaproximamos da barbárie, encontrando o cenário perfeito para a instalação do caos.

Se no pacto social abrimos mão de parte de nossa agressividade e de nossa liberdade para viver em grupo, o que passa a acontecer se essa vida em grupo não nos dá garantias mínimas contra o desamparo? Qual seria o ganho do processo civilizatório, o contrapeso para o nosso mal-estar?

O clima de instabilidade, agravado pelo discurso de ódio, também é atravessado pelo discurso produtivista vigente, que valoriza um modo de vida pautado pelo utilitarismo, pela ganância e pela quantificação de experiências de sucesso estabelecidos pelo status quo. Se algo escapa a essas métricas, é tomado como fracasso.

No Brasil, muitas famílias e escolas estão sendo confrontadas com perdas brutais. Parece importante repensar as políticas de educação e construir ambientes que sejam menos voltados para o mercado, mais preocupados com a formação humana. Quando disciplinas como artes, filosofia e história são negligenciadas, que lugar estamos garantindo para o exercício do pensamento crítico e da criatividade? Em ambientes que valorizam o individualismo e a competitividade, que lugar existe para a busca de um bem comum que não apague diferenças?

De um lado, temos crianças, adolescentes e jovens adultos cada vez mais frágeis, com baixa tolerância a frustrações. De outro, um excesso de medicalização, que diagnostica comportamentos e sofrimentos que não estejam alinhados com as expectativas de produtividade. Basta olhar para as atualizações do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtorno Mentais, o DSM, e teremos uma amostra.

Sabemos que tratamentos psiquiátricos, quando bem conduzidos, podem ser grandes aliados, mas, de outro lado, vivemos num mundo que transforma diferentes formas de existência e de sofrimento em patologias. Há uma tentativa de pasteurização, de automatização da experiência humana. Estimulantes de um lado, calmantes de outro, resta pouca margem de manobra para uma existência complexa.

Numa das reuniões do Latesfip, um dos pesquisadores argumentou que o neoliberalismo consegue absorver os próprios colapsos. Um exemplo: quando transformamos uma frustração num desabafo nas redes sociais, também estamos gerando dados que serão usados contra nós, a partir de um mapeamento de vulnerabilidades. O sofrimento que o próprio sistema causou se torna instrumento para que o perpetue. É uma lógica macabra, mas que, infelizmente, passa longe das teorias da conspiração.

Nesse cenário, os movimentos de oposição parecem cada vez mais importantes. É complicado dizer qualquer coisa otimista diante dos noticiários de hoje, mas se lembrarmos que estamos em um ano de eleições e ainda podemos evitar que Jair Bolsonaro, candidato que se posiciona contra minorias e a favor da violência, venha a se tornar o nosso presidente, penso que precisamos lutar para construir um espaço de debate, um futuro menos intransigente com as diferenças. É difícil acreditar que possa ser um futuro bonito, mas quem sabe possamos começar pensando em um futuro menos hostil.

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